O telefone tocou, e não era pra mim. Mas como não tem tu, vai tu mesmo. Fui com um amigo de segunda mão assistir a alguma coisa no cinema aqui perto de casa. Veríamos Shame, de Steve McQueen, filme sobre um cara viciado em sexo. Mesmo tendo chegado quarenta minutos antes, não achamos mais ingresso. Vício em sexo lota qualquer sala.
Trocamos de cinema, compramos entradas pra um filme sobre o qual não tínhamos informações, e fomos ver As neves do Kilimajaro (Les Neiges du Kilimandjaro), de Robert Guédiguian. Esse era sobre vida de trabalhadores, sobre acreditar em sindicato, sobre solidariedade, sobre ser casado há décadas, enfim, sobre essas coisas que vão se acabando com a mesma velocidade que as neves nos altos dos picos em tempos de tempo quente. Bateram palmas no fim da sessão, mas eram aquelas palmas que eu escuto constrangido quando um melodrama acaba. Alto-astral e altruísmo precisam de doses cavalares de fantasia acompanhando —em histórias realistas, gente boa só me aborrece.
Dia seguinte eu voltei ao cinema. Vi A vida dos peixes (La vida de los peces) de Matías Bize. Foi indicado por alguém em quem começo a confiar: bom sinal. Tem resistido em cartaz numa salinha minúscula, em uma sessão diária, já faz um tempo: mais bom sinal. E o bonequinho da crítica do jornal tava dormindo pra esse filme: sinal que costuma ser excelente. Vi sozinho, no maior silêncio, pra assim permanecer por horas. Como nas nossas vidas, na vida dos peixes há muitos fachos insistentemente acesos, muitos buracos atraentes e muita memória traiçoeira (tanto pelo que guarda quanto pelo que deixa de guardar).